quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Ensaboadas



           - A palavra toma banho de porta aberta. É isso. Pega a palavra polenta, por exemplo. Ela é massuda, encorpada, quente. Diferente da palavra pepino, que é uma palavra mais fina, leve, refrescante. As palavras se escancaram, se arreganham, a gente só tem é que prestar um pouco de atenção nelas, parar, sentir o cheiro, imaginar a textura, a cor, se a palavra é quente ou fria, magra ou gorda, clara, escura. É isso o que eu faço o tempo todo, é isso o que eu tô fazendo agorinha mesmo, nesse bar com você. Depois, quando chego em casa, tudo o que eu tenho que fazer é passar pro papel. – Arrematei, enquanto limpava com a mão o bigode de espuma que o chope tinha deixado.
           Ele só tinha me perguntado o que eu fazia, e eu disse eu escrevo, como quem diz sou advogada ou médica. Ele me devolveu um sorriso intimidado, então você é escritora, e aí já era, destrambelhei todo um discurso até chegar nas palavras tomando banho. Enquanto tagarelava, ele me olhava com uma cara de quem falava outra língua. E ele falava outra língua, eu sabia bem e até curtia que fosse assim. Eu só tinha dito tudo aquilo porque gostava do jeito que as pessoas reparavam nas minhas pupilas se acendendo toda vez que eu falava em escrever. E quando não me entendiam era ainda melhor: olhares abobalhados me faziam subir às alturas.

           - Vai mais um? - o garçom me perguntou já trocando a tulipa. Fiz que sim com a cabeça e, enquanto ele ia ao banheiro e eu saboreava outra vez o primeiro gole, pensava sozinha no efeito dos chopes. A cerveja me conectava todas as ideias por dentro, as palavras vinham correndo de mãos dadas, uma e depois a outra, e a outra e a outra. Chegavam apressadas, famintas de voz, ansiosas pra serem faladas, escritas, vomitadas no burburinho do mundo. Tinha vezes até que elas se atropelavam e acabavam amontoadas, indefinidas - onde termina uma e começa a outra? - feito brincadeira de cabo-de-guerra quando acaba. Quando eu bebia, as palavras tinham fogo no rabo.
           Se eu me esforçasse, sentia até a textura delas, tinham algo dessa mistura de chope com poeira que escorre no peito decotado nos dias quentes. As palavras cheiravam a horário de verão. Eram quase negras, esfumaçadas, e gostavam mesmo era de chegar em bando, junto com a neblina da noite. Tinham um quê de adolescente: vinham tímidas, camufladas com o escuro do céu, mas era só se darem as mãos, começarem um tititi aqui e outro ali, que logo logo se assanhavam todas convidativas, soltando de vez em quando uns gritinhos de para, para, que de verdade não era pra parar coisa nenhuma. O que elas queriam era que a gente continuasse, uma frase e depois a outra, venham todas de uma vez que a vida é curta e passa depressa.
           Depois, já em casa, era só catar os restos da noite e passar pro papel. Só isso. Ser escritora afinal era coisa simples, mas ele não precisava saber desse detalhe, pelo menos não por enquanto. Que ele seguisse com seu sorriso intimidado, achando que ser escritora era feito ser astronauta ou atriz de hollywood, viver de estrelas, enquanto ele, bom, não sei bem o que ele fazia, mas já imagino um escritório com janelas de vidro sempre fechadas, ele e os colegas de trabalho trocando vídeos de putaria no whatsapp enquanto vendiam suas horas a sabe-se lá quem. Que ele seguisse sem desconfiar que o que fazia não passava de uma grande brincadeira de mau gosto, qualquer coisa sobre vender números, encher de abas uma planilha, enquanto eu, ah, que eu seguisse com meus restos de noite.
           Os pensamentos continuavam amarradinhos, um lençol amarrado ao outro e ao outro e ao outro, todos descendo depressa rumo à fonte de palavras que jorrava sem cessar. Fuga de rapunzel. De repente, um estalo: por que catar as sobras se as palavras chegavam em bando, foguentas feito eu com meu chope já pela metade? Peguei um guardanapo, achei uma caneta perdida na bolsa. Vamos rápido, antes que ele volte e me ache uma louca. Tentei rabiscar alguma coisa, as palavras cheiram a verão e etc., mas só o que vinham eram migalhas de pensamento, expressões soltas de frases que já se foram. A velocidade do pensamento é maior do que a velocidade da luz, algum filósofo disse uma vez assim. Mas ele tá vindo, amassei rápido o guardanapo, joguei na bolsa junto com a caneta, e já fui dizendo, bebe logo que seu chope tá esquentando.
           No dia seguinte, ele me mandou uma mensagem perguntando se eu tinha espiado as palavras se ensaboando naquele domingo. A pergunta me trouxe um flash, tipo um retalho de sonho, do que é que ele tá falando mesmo? Fui rebobinando a noite passada até chegar outra vez nas palavras tomando banho. Um sorrisinho se assanhou no canto da boca: ele podia falar outra língua, e falava mesmo, mas se lembrou da minha tagarelice, se bobear ficou até pensando naquela história da polenta e do pepino. Já imaginei logo ele comprando hoje cedo o cigarro da ressaca na banca de jornal, pegando o troco e pensando: e moeda? É uma palavra quente ou fria? Magra ou gorda?
           Com certeza, a mensagem dele era efeito das minhas pupilas de ontem, eu me dizia enquanto entrava em casa com os braços vermelhos de sacolas do mercado. Mas também podia ser porque ele queria me comer, é claro. De todo modo, não deixava de ser criativa, o máximo de poesia a que ele conseguia chegar, e se fosse pra me comer, que me comesse com poesia. Deixei as compras na bancada da cozinha, peguei no celular e já fui respondendo que as palavras não gostavam muito de banho aos domingos, dava preguiça, mas quem sabe logo mais elas não se animavam. A cada legume que eu tirava da sacola, era mais um apito e uma luzinha se acendendo. Se elas não animarem, eu pego e apareço no lugar delas, ele me respondeu mais ou menos assim. Sua atitude me fez estremecer, mas eu tinha que continuar o jogo, flertar com palavras era o meu ofício, afinal. Hmmm…, fui dizendo cheia de reticências enquanto passava uma água na sacola reciclável suja de chorume, acabei de ligar o chuveiro, se elas não aparecerem pra me fazer companhia, te chamo sim, três pontinhos e uma carinha piscando. Continuamos nessa punhetagem mais um pouco, até ficar na cara que bom... foda-se as palavras.
           Quando ele chegou, eu já tava na segunda taça de vinho. Tinha comprado duas garrafas no mercado, vai que… E foi. Bastou dizer pra ele que as palavras me abandonaram e me deixaram sozinha no banho, que ele respondeu: me passa o endereço que tô indo praí. Assim mesmo, sem poesia nenhuma. A essa altura, é bom dizer que eu já tava cagando pra poesia. Tinha acabado de abrir o vinho, aberto meu moleskine novo, a caneta de que mais gostava. Estava sentada no sofá, com as pernas esticadas e a página em branco. Não interessa se é moleskine, guardanapo ou laptop, página em branco é tudo igual, eu pensava enquanto uma gota de vinho caía estreando a primeira folha. Olhei pro celular, nenhuma mensagem dele. Quando vi, meus dedos formigando já tinham destravado, aberto a conversa e deixado as palavras saírem prontinhas, dizendo que tinham me abandonado e coisa e tal. O que, afinal, não era de todo verdade: elas só preferiam ser enviadas a ser fechadas sob a capa vermelha.
           Ele chegou de cara lavada, o corpo limpo de domingo à noite. Era a primeira vez que eu olhava pra ele no claro. Ele tinha uma pinta esquisita no nariz, será que era uma verruga? Seus olhos tímidos me diziam que ele não era tudo aquilo. Pensei se meu olhar também não dizia o mesmo, e tratei logo de desviar as pupilas pra baixo. No caminho, veio o relance de uma amiga dizendo que a primeira coisa que reparava num homem eram seus sapatos. Não sei se concordava, mas por via das dúvidas reparei, cheia de medo de, além do sinal no nariz, ele também ser cafona. Mas ele tava de allstar. Ai, ele tava de allstar...
- Toma vinho?, perguntei já enchendo sua taça antes mesmo dele responder que tomava. Sentamos no sofá, um escondendo os olhos do outro, os dois bebendo mais rápido do que falando. Perguntamos de família, de trabalho e de outras coisas que lembravam segunda-feira. A conversa saía molenga e arrastada, ela toda uma grande mentira: a gente fazendo de conta que se importava, a gente sabendo bem que não tava nem aí. As palavras serviam mesmo era pra disfarçar os olhos.
Até que ele viu meu moleskine.
- Tava escrevendo, é?
Suas mãos de cigarro, de álcool e de putaria no whatsapp já iam pegando no meu caderno. Olhei pros seus dedos morenos e peludos e de repente me vi pálida, de uma adolescência virginal, outra vez debutante apavorada de que me abrissem o diário. Meu caderno não era bom o suficiente praquelas mãos. Ainda que pálida e virgem, fui mais rápida que ele e tratei logo de pegar o moleskine, aterrorizada de que ele abrisse e desse de cara com a página em branco. Se a folha ainda estivesse toda branca, ainda ia, era só dizer que o caderno era novo, que eu ainda não tinha começado, podia até mentir dizendo que tava terminando um outro. Mas a mancha de vinho denunciava que eu tinha tentado, que o branco tinha me encarado e que ele, e não eu, tinha vencido. A mancha arroxeada entregava meus medos, contava a quem quisesse ouvir que as palavras não eram tão minhas amigas assim, que eram elas que mandavam na porra toda, que elas podiam aparecer pra mim ou pra outra pessoa, hoje, amanhã ou nunca mais. As palavras podiam até decidir que eu não era escritora.
Com o caderno sobre o peito, eu me sentia completamente nua. Sua capa tinha desmanchado pra mim, aquela capa dura vermelha, que você olha a quilômetros de distância e vê logo que é um moleskine. Tudo o que restava era meu corpo em branco, a página em branco, a mancha roxa de quem havia tentado. Guardei o caderno na gaveta do rack, ele me olhando esse tempo todo, o que aconteceu que ela parou de falar? As palavras tinham me deixado na mão, com elas não se podia mesmo contar, mas tudo bem, o que importa é que nem tudo estava perdido: eu bem conhecia um jeito delicioso de me vestir outra vez. Minhas pupilas seguiriam disfarçadas, as dele ficariam nuas feito meu moleskine sem capa.
Dei uma boa golada no vinho, apoiei a taça sobre a mesa, sabendo que só a veria de novo na segunda de manhã. Limpei o roxo da boca, encarei seus olhos até eles se sentirem tão nus como eu até então. Eu estava com um vestido de alça, desses que basta um toque pra rolarem ombro abaixo. Toquei numa alça e depois na outra, fui sentindo o vestido deslizar sobre o corpo liso e hidratado, o pano escorregando sem qualquer atrito com a pele até cair por completo no chão. Enquanto os pés se desvencilhavam da roupa, meu olhar vestido continuava fixo no dele, já tão despido, coitado, mas calma, aguenta que tem mais. Fui tirando a roupa de baixo bem devagar, a vingança se esticando sem pressa, juntinho com o resto de domingo. Enfim pelada, peguei na sua mão, como quem conduz uma criança ao parque, e levei seus dedos pra tomarem um belo de um banho.




O conto Ensaboadas ficou em segundo lugar no I Concurso Literário Chopp com Letras, de Friburgo. Na foto: David Massena (organizador), Marcelo Moutinho (escritor homenageado), eu e Déborah Simões (organizadora).








quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

Lembrete

Não te ponho no mundo pra que você seja doutor, senhor ou excelência.
Não te ponho pra que seja músico, escritor, de esquerda ou de direita. 
Não quero saber se você vai ser católico ou ateu, hetero ou gay,
flamenguista ou tricolor, virgem ou libra.
Pouco me interessam suas grandes escolhas.
Se forem iguais às minhas, melhor pra mim.
Se não forem, vão me fazer lembrar que não é essa a questão.

Te ponho no mundo pra que se perca nas cores do céu,
azul branco cinza preto vermelho rosa laranja lilás.
Pra ver os formatos das nuvens indo e vindo,
ouvir cigarras numa noite sem estrelas,
ver estrelas num céu de verão.
Te ponho no mundo pra que você sinta os dedos dançarem,
 a voz correr solta,
a face descontrair numa música que te mande no corpo.
Pra que, numa noite fria, você se veja rodeado de amigos,
todos em volta de uma fogueira,
escutando o fogo crepitar em meio a notas de um violão.
Te ponho no mundo pra que você se banhe no mar, na cachoeira, no rio,
e se sinta aquecido sobretudo com a água gelada.
Pra que passe horas de um domingo à tarde na cama,
se dedicando à tarefa mais urgente de todas:
encher de cosquinhas quem você ama. 

Te ponho no mundo pra que aqueça.

Meu filho, quando eu vier com exigências loucas
e esquecer pra que te coloquei no mundo,
peço só que você me lembre:
foi de dentro pra fora que te trouxe aqui.
e não de fora pra dentro.



domingo, 18 de setembro de 2016

Aquarius: entre o boicote e a arte

A campainha toca, era o neto de Clara que vinha passar o dia com ela. Clara põe uma máscara de cavalo, dessas enormes que chegam a nos pesar a cabeça. Imaginamos o riso contido por debaixo da fantasia, esperamos um sorriso de criança diante da travessura. Mas a filha de Clara, a mãe do menino, passa reto sem notar a fantasia, enquanto se queixa do dia e dá instruções com o filho no colo. Como se a mãe tivesse desde sempre cara de cavalo. Ou de mulher. Tanto faz. Clara, um tanto quanto sem graça, tira a máscara e escuta, obediente, o que devia ser feito.
            Uma semana após ter assistido Aquarius, o filme ainda ecoa, me pesando as ideias feito a máscara de cavalo na cabeça de Clara. E essa cena em específico volta e volta e volta. Uma cena de poucos segundos, que logo é substituída por outra, uma cena assim, pequena e de pouca importância. Mas esses poucos segundos me resumem o filme todo. Me resumem tanto da vida! Não um resumo assim, desses que perdem os detalhes enquanto preservam a Ideia principal, com I maiúsculo e toda cheia de importância. Não. Estou falando de um resumo enquanto potência, um resumo do pequeno, da poesia em estado de semente.
A filha de Clara não conseguia ver poesia em seus dias. Sua vida era sua rotina, sua rotina era sua logística. Babá, carro, trabalho, filho. E um brilho murcho escorrendo dos olhos. Se a vida de Clara podia ser escrita numa música e gravada num vinil, ou num moleskine e impressa num livro, a da filha era esquematizada numa planilha de excel e exposta num programa de power point.
            Na vida que corre cá solta, não somos nem só a Clara nem só a filha (desculpem-me o ato falho, mas não consigo lembrar seu nome). De verdade, nem a Clara é só Clara ou a filha é só a filha. Somos todos uma luta constante, um jogo de forças entre um e outro. Controlamos os ponteiros, fatiamos os dias em tarefas, linhas e colunas, mas aí – sempre tem um “mas aí” – a vida chega e nos presenteia com uma máscara de cavalo, uma cicatriz no peito, uma gargalhada amontoada de gente. Podemos enrijecer e fazer de conta que nada vemos, ou podemos nos entregar às desimportâncias. De um lado o boicote, do outro a arte. A escolha é nossa, embora não seja nem fácil nem evidente. Embora exija um esforço. Clara que o diga.

            Durante todo o filme, a protagonista era convocada uma vez e mais outra e mais outra a reafirmar a sua escolha. A escolher novamente. Entre o mp3 e o vinil, o silicone e a cicatriz no peito, o aquarius e o Novo Aquarius. Como se tivesse algo errado em optar pela história,  como se a louca fosse ela. Mas ela escolhia, contra todos, a favor da vida. Ela escolhia a poesia. 


sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O lixo de Copacabana (Bolívia)

Por que o lixo incomoda tanto? Garrafas pet e embalagens empoeiradas me fazem desviar o olhar. Se eu não olhar, não existe. Tento e tento, cheia de um esforço desperdiçado. O lixo esperneia ainda mais quando não olho. Espelho do que carrego por dentro.
Camisinhas espalhadas no chão pinicam o lixo que levo em mim. Viajar não é só pôr do sol, compras e vinho. É encontrar-se inteira. Rebelião de pelos, cutículas espetando a pele, sobrancelhas desenhando novos caminhos, meia úmida virada pelo avesso. E um vago assombro dos fantasmas que deixei em casa.
Pesadelos e excrementos se misturam a paisagens cheirando a brinquedo novo. Viajar é melar o rosto de espanto e de banho velho.


segunda-feira, 18 de abril de 2016

Desabafo

Quando escutei o primeiro “Queria mandar um beijo pra minha neta Ana que faz aniversário hoje”, confesso que gargalhei. Tipo aquela risada nervosa de vergonha alheia, sabe? Mas, voto após voto, o absurdo se repetia: era beijo pra neto, pra eleitor, pra filha, pra papagaio. Minha risada nervosa foi murchando e, de boca que esquece de fechar, assisti bizarrice atrás de bizarrice. Se fosse só assim, feito espetáculo de circo, até que tudo bem: seria meu programa de domingo à noite. O problema é que não era só um espetáculo (embora tivesse até quem jogasse confetes): era o futuro do nosso país, era quem nos governa, é o retrato do brasileiro.
Sim, do brasileiro. Afinal de contas, os deputados que mandavam beijo pros amigos e familiares, como se estivessem num show da Xuxa, não vieram da Dinamarca nem da Suécia. Eles são os mesmos que assistem ao Jornal Nacional e se dizem informados, que postam memes preconceituosos no facebook, que passam corrente sobre política no whatsapp jurando que é tudo verdade como se viesse do Além.
E é esse brasileiro - motorista de taxi, médico, engenheiro ou deputado – que não lê, que não estuda, que não lembra. Que só de escutar falar, já passa adiante. Que não sabe direito o que é política nem democracia, mas que acha bonito falar essas palavras grandes, principalmente quando já vêm em frases prontas.
Foi esse brasileiro que nos representou ontem, no show de bizarrices que me fez acordar ressaqueada. Um brasileiro que não tem a menor noção do que é público e do que é privado. Que se aproveita de um espaço e de um momento tão delicado em prol de interesses pessoais - como fazer propaganda eleitoral, fazer bonito com a igreja, mandar um beijo pra não sei quem.
Curiosamente, dos pouquíssimos que deram argumentos contundentes, quase todos eram contrários ao impedimento de Dilma. O que prova que das duas uma: ou quem votou a favor não fez direito o dever de casa de saber porque votava a favor; ou não existe mesmo motivo contundente que justifique o crime de responsabilidade e, portanto, o impeachment.
Se as falas não pareciam muito bem preparadas, o mesmo não se pode dizer das vestimentas: todo mundo de verde e amarelo, como mandava o figurino e a comemoração de depois. Já dizia, porém, um professor meu da época de faculdade: “Quando vocês verem muita gente com bandeira de país, se não for Copa ou Olimpíadas, desconfie”. É que, quando a gente defende demais uma instituição – um país, uma igreja, uma cidade, um jeito certo de família ser, um jeito certo de se relacionar -, automaticamente se exclui tudo o que não pertence a essa instituição. E então surge a xenofobia (os médicos cubanos que o digam), a intolerância religiosa, a homofobia, o racismo, o machismo etc. O fascismo vem daí, nadando entre fanatismos e preconceitos.
Pensando bem, não acordei ressaqueada por conta da decisão favorável ao impeachment de ontem. Agora vejo: o que me enojou foi ver tão de cara, tão cru e sem maquiagem, o retrato do brasileiro que se desenha hoje. Porém, mais do que tirar o Bolsonaro, Cunha ou Temer do poder (afinal de contas, que nem eles têm milhares de outros doidos pra chegar lá), o que me interessa pensar é: o que estamos fazendo (ou deixando de fazer) para que esse tipo de pensamento se propague e ganhe força? Em que tipo de fascismo entramos para que as nossas vontades sejam as mesmas de defensores da tortura e de oportunistas baratos?
Desculpem-me a falta de otimismo – juro que não sou assim todo dia. É que hoje acordei de ressaca e precisava pôr pra fora. Pronto, já me sinto melhor.


terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

30

Apressada, minha crise dos 30 se insinuou aos 28, junto com os primeiros fios brancos e uma receita de creminho antirrugas. “Sua pele é muito fina”, decretou sem cerimônias a dermatologista, “temos que cuidar desse pé de galinha”. Cheguei no consultório falando de espinhas; saí com um prognóstico fatal na pele e amostras de colágeno na bolsa.
A receita trouxe consigo uma séria questão: comprar o creminho seria um caminho sem volta. Creminho, aliás, era eufemismo: importado, custava uma pequena fortuna. Somei, mentalmente, o valor de todos os creminhos que compraria a partir de então, travando uma batalha que, mais cedo ou mais tarde, sairia perdedora. Triunfante, escondi a receita numa pasta: não iniciar a luta era, de alguma forma, sair ganhando.
Ainda não cedi ao creminho – nem à tinta nos cabelos. É um tanto estranho, mas admito: os fios brancos me trazem certo prazer. Reluzindo histórias pra contar, cada fio traz à tona uma época vivida: entrada na faculdade, primeiro amor, saída de casa, primeiro emprego. Rebobino os 20 como quem lembra uma viagem - única porque minha. Ao invés de catar moedas e comprar creminhos, meus pés de galinha olharam as estrelas: quais viagens me esperam nessa fase que se inicia?
Mas as rugas e os fios alvos foram só parte da crise. Visível e concreta, talvez por isso mais fácil de lidar. Sinto essa geração de mulheres se beneficiar do feminismo que pipoca hoje: nossos corpos começam a sair do domínio público, pra ganhar a esfera privada. Da máxima “homem de cabelo branco é charmoso; já mulher, é bruxa”, vejo despontar mais e mais grisalhas estilosas e donas de seus cabelos. Mas isso é papo pra outra história.
Já a outra parte da crise, como ia falando, foi bem mais insossa. Passei os 29 com gosto de boca mordida, ruminando os medos da década que batia à porta. Sabe aquela gaveta bagunçada, que você sempre deixa pra arrumar depois? Pois é, essa gaveta era os 30. Menina, imaginava-me uma trintona de salto alto, planejando o segundo filho e indo trabalhar numa nave dos Jetsons. Mas lá estava eu com 29: de allstar, dando duro pra alimentar dois gatos, e indo pra labuta cheia de dúvidas na cestinha da bicicleta.
Foi, porém, a menina de allstar, e não a mulher de salto, quem juntou forças e arrumou a gaveta. Joguei fora o que já não me servia, botei pra jogo o que tinha de mais precioso e, numa caixinha não muito grande, não muito pequena, guardei as dúvidas como quem guarda fotos e cartas – consciente de nelas haver um quê de poesia.
Hoje, já de gaveta arrumada, qual não foi minha alegria ao deparar-me comigo mesma. Dos 30, não veio a outra, com respostas na bolsa de marca e longos cabelos soltos. A mulher que surgiu fui eu própria, com algumas dúvidas na bicicleta e outras certezas no coque bagunçado.




segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Conversa com o autor

Recentemente, tive o prazer de participar, em conjunto com a Pepita Sampaio, do programa Conversa com o autor, que foi ao ar na rádio MEC AM. 

Idealizado a partir de um projeto da Casa da Leitura, da Fundação Biblioteca Nacional, o programa tem como mediadora a jornalista Katy Navarro, da Casa da Leitura.






Pros interessados, o link é esse:

http://radios.ebc.com.br/conversa-com-o-autor/edicao/2015-10/luisa-benevides-e-pepita-sampaio-no-conversa-com-o-autor

Espero que curtam o programa!